
O desenvolvimento das crianças é fortemente influenciado pelo ambiente familiar e pela forma como os pais cuidam e educam seus filhos. Por isso, pensar a primeira infância passou a estar também relacionado ao estímulo à parentalidade positiva, que recentemente, passou inclusive a constar na legislação.
A Lei 14.826, de 2024, vem trazer a ideia de uma educação de crianças e adolescentes baseada no respeito, no afeto e na não violência. É um modo de criar crianças em que os limites são estabelecidos em conjunto, privilegiando a escuta e o diálogo. O objetivo principal é criar um ambiente familiar de suporte ao aprendizado, em que os pais reforçam o comportamento desejado e veem a criança como um indivíduo com direitos.
Além desse conceito da parentalidade positiva, a norma traz também o direito ao brincar, que é um direito fundamental de toda criança, reconhecido mundialmente.
Incentivar a parentalidade positiva é necessário considerando que muitas famílias ainda utilizam práticas negativas com seus filhos, como a violência (tapas, palmadas e abuso psicológico) –, que representam fatores de risco para o desenvolvimento das crianças. Essas práticas podem ser modificadas, de forma a quebrar ciclos intergeracionais de violência.
No Brasil, a Lei do Menino Bernardo (também conhecida como Lei da Palmada) — que proíbe o castigo físico ou o tratamento degradante na educação e cuidados de crianças e adolescentes — está em vigor desde 2014. Especialistas afirmam que a violência no meio familiar deixa marcas físicas decorrentes do castigo corporal e também sentimentos de medo e culpa a longo prazo. Além disso, aumenta as chances de a criança ou o adolescente repetir os mesmos atos em outras situações.
Nesse mês da campanha “Agosto Verde”, o TCE-ES ressalta aos gestores que a legislação prevê que iniciativas de fortalecimento da parentalidade positiva e de promoção do direito ao brincar devem ser implementadas em diferentes esferas governamentais, incluindo a União, estados e municípios, no âmbito das políticas de assistência social, educação, saúde, cultura, e segurança pública.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também consta que o Estado deverá realizar ação de promoção de programas de fortalecimento da parentalidade positiva, da educação sem castigos físicos e de ações de prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.
A parentalidade positiva é uma estratégia baseada em evidências de qualidade que, associada a outras abordagens, previne violências e amplia os fatores de proteção. Cabe aos gestores buscar fortalecer esta prática no contexto de políticas públicas, como destaca a coordenadora do Núcleo de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas Sociais Ampliadas do TCE-ES, Simone Velten.
“O poder público precisa ser o agente mobilizador e transformador, incentivando, apoiando, orientando as famílias e a sociedade para a cultura da educação baseada em igual valor e ao respeito mútuo com as crianças. Hoje já não é mais aceitável a violência contra as mulheres e aos animais, mas ainda é tolerável a violência infantil. Precisamos de campanhas permanentes para conscientizar a todos”, frisa.
Ela destaca que adultos devem desenvolver habilidade de regular emoções e comportamento para educar crianças de forma saudável, incluindo o uso de práticas parentais positivas, afetuosas e não violentas ou abusivas nas situações desafiadoras do dia a dia. E o poder público pode apoiar as famílias nesses aspectos, por meio de ações voltadas à saúde mental.
Boas práticas
Um dos exemplos de programas de parentalidade com foco na primeira infância já adotados no Brasil é o “Programa ACT para educar crianças em ambientes seguros”. No estado do Ceará, o ACT foi implementado e avaliado em 24 municípios, vinculado a políticas públicas, em especial à área de Proteção Social e seus respectivos serviços (Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família [PAIF] e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos [SCFV]), e com o público prioritário as famílias beneficiárias de programas de transferência de renda (Bolsa Família e Cartão Mais Infância Ceará).
O programa consiste na realização de oito encontros em grupo, uma vez por semana, com duração de duas horas, com os seguintes conteúdos: a) compreensão do comportamento e desenvolvimento infantil; b) violência na vida das crianças; c) manejo da raiva no adulto; d) como ajudar a criança na regulação emocional incluindo a regulação da raiva; e) a influência da mídia eletrônica; f) estilos parentais; g) disciplina positiva; h) e a função dos pais na promoção de ambientes seguros para as crianças.
Os resultados mostraram que os cuidadores que participaram do programa ACT apresentaram um aumento significativo no uso de práticas parentais positivas, como a comunicação, regulação emocional e comportamental, e na estimulação infantil, além de uma redução no uso de práticas que envolvem a violência (tapas, palmadas e xingamentos) e uma diminuição nos problemas de comportamento das crianças.
Outra iniciativa são os programas de visitas domiciliares, que possuem evidências científicas dos seus efeitos para a promoção do desenvolvimento infantil. Um deles é o “Programa Criança Feliz”, já implantado em municípios do Brasil. Sua metodologia foi inspirada no programa “Reach Up”, desenvolvido na Jamaica.
No Espírito Santo, dos 78 municípios, 46 aderiram ao Programa, mas somente 35 estão executando. Onze prefeituras chegaram a fazer a adesão formal junto ao governo federal, mas não iniciaram efetivamente o trabalho. O TCE-ES está com uma auditoria em andamento, para avaliar se as gestões municipais e estadual estão sendo eficazes ao implementar as ações previstas no programa de visitas domiciliares.
O programa visa apoiar os cuidadores na utilização de práticas parentais positivas e na estimulação das crianças nas diferentes áreas do desenvolvimento, como a cognitiva, a linguagem, o desenvolvimento motor e o socioemocional. Durante as visitas domiciliares, o visitador apresenta e discute com os cuidadores maneiras simples de interagir com as crianças para fortalecer os ambientes acolhedores para as famílias e melhorar as habilidades das crianças.
O "Criança Feliz” usa um currículo estruturado para orientar os profissionais que realizam a intervenção, cuja ênfase é a melhoria das habilidades dos cuidadores na promoção da aprendizagem e no desenvolvimento das crianças por meio de interações responsivas. Os resultados dele demonstram uma melhora no desenvolvimento das crianças e das famílias que participaram de no mínimo dez visitas domiciliares.
Outro exemplo é o programa “Famílias fortes”, implementado em Osasco (SP), que trabalha a parentalidade positiva no ambiente escolar. O método foi criado pelo Departamento de Serviço Social da Oxford Brookes University (Reino Unido), adaptado para o Brasil e é baseado em evidências científicas.
No programa, destinado a famílias com filhos entre 10 e 14 anos para a prevenção de comportamentos de risco, os pais ou responsáveis se reuniram em uma sala e os filhos em outra, com sete encontros semanais. Ele visa promover o bem-estar dos membros da família a partir do fortalecimento de vínculos e do desenvolvimento de habilidades parentais e sociais.
Os adultos recebem orientações de normas de desenvolvimento de crianças e adolescentes, e os filhos aprenderam habilidades para interação pessoal e social. Ao término das oficinas, pais e filhos se reuniram numa mesma sala onde praticaram as habilidades aprendidas em atividades com o intuito de aumentar a coesão familiar e o envolvimento positivo dos filhos na família.
Direito de brincar
Outro aspecto que deve ser considerado pelos gestores públicos, e também trazido pela recente Lei nº 14.826/2024, é que crianças e adolescentes têm direito ao brincar livre de intimidação ou discriminação, a se relacionar com a natureza, a viver em seus territórios originários e a receber estímulos parentais lúdicos que proporcionem seu desenvolvimento.
Associado à construção de confiança, potência criativa e autonomia, o brincar livre é quando adultos não interferem o tempo todo no que as crianças devem fazer. Em vez disso, as acompanham com seu olhar de encorajamento e admiração pelas descobertas que são capazes de fazer.
Os benefícios de brincar com os filhos na primeira infância e de comportamentos parentais positivos já foram associados em pesquisas a melhores resultados de desenvolvimento infantil integral, melhorando domínios como comunicação, coordenação motora ampla, coordenação motora fina, resolução de problemas e habilidade pessoal social. Municípios também podem investir em políticas públicas que orientem e incentivem o ato de brincar com os filhos, para um desenvolvimento sadio.
De igual forma, a garantia de locais públicos como praças com equipamentos lúdicos, brinquedotecas e espaços ao ar livre também são de responsabilidade do poder público.
“Brincar tem que ser levado muito a sério como política pública, com espaços públicos que garantam o direito à desconexão das telas e contato com a natureza. Quando olhamos para o modelo de planejamento urbano das cidades, muito disso foi suprimido”, aponta um estudo do Instituto Alana.
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