
Todas as crianças, independentemente de onde crescem, devem poder viver em um ambiente que apoie seu desenvolvimento saudável. Por isso, nesse mês da campanha Agosto Verde, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) alerta os gestores públicos do Espírito Santo de que, além da necessidade de investimentos que reduzam as desigualdades sociais , é preciso que trabalhem para que as desigualdades do ambiente urbano e coletivo também sejam corrigidas, pensando especialmente na primeira infância.
A cidade e o bairro onde a criança vive podem afetar o seu desenvolvimento. E para que ocorra a efetiva ocupação do espaço urbano por bebês, crianças e seus cuidadores, e também a criação de senso comunitário e de vizinhança, o acesso à cidade como um todo e a criação de vínculos com o ambiente, é preciso que a cidade tenha qualidades importantes na perspectiva da primeira infância, como segurança, acessibilidade, conforto, ludicidade, integração e ambientes e elementos naturais.
A primeira infância deve ser considerada como um tema transversal também para o desenho urbano, pois influencia na forma como os espaços são planejados. Os empreendimentos imobiliários, como frações da cidade, devem, portanto, levar em consideração os mesmos princípios e diretrizes que dizem respeito a um bom ambiente urbano.
Desde a qualidade da moradia, a vizinhança mais próxima, o bairro e a cidade como um todo, passando pelas questões de mobilidade e pelo planejamento urbano territorial, todas essas esferas são responsáveis por garantir a presença da criança no espaço urbano da melhor forma possível.
Esses apontamentos constam no estudo da Rede Urban95 sobre Habitação Social e Primeira Infância. A iniciativa Urban95 tem apoiado cidades a planejar seus espaços públicos, programas e serviços urbanos a partir da perspectiva de quem vê o mundo a 95 cm de altura — a altura média de uma criança de três anos.
O Marco Legal da Primeira Infância prevê que estados e municípios se organizem para a criação de espaços lúdicos que propiciem o bem-estar das crianças de 0 a 6 anos, o brincar e o exercício da criatividade em locais públicos e privados, bem como a fruição de ambientes livres e seguros em suas comunidades.
Um ambiente acolhedor é essencial para o desenvolvimento saudável da criança. Principalmente a partir dos 3 anos, o bairro também passa a ter um papel importante, com vários fatores que podem afetar o desenvolvimento infantil. Quando a família possui uma boa rede de apoio no bairro e confiança na comunidade, a influência é positiva. Pode inclusive atenuar os malefícios de uma região violenta.
Já a falta de acesso a saneamento básico, transporte, lazer e segurança atrapalham o desenvolvimento infantil. As conclusões são do estudo “O Bairro e o Desenvolvimento Integral na Primeira Infância”, do Núcleo Ciência pela Infância, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Pobreza
No Espírito Santo, de acordo com dados do CadÚnico de 2025, há 155.494 famílias com criança de 0 a 6 anos. Entre elas, uma parte é de famílias consideradas baixa renda (com renda de até meio salário mínimo por pessoa) e outra está na faixa de pobreza (com renda familiar per capita mensal até 218 reais).
Viver em situação de pobreza no Brasil significa, via de regra, também viver em bairros segregados e precários. Essa desigualdade espacial é um fator essencial na discussão da primeira infância, uma vez que as crianças são particularmente expostas às externalidades negativas dos locais onde moram.
De acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as áreas em que as condições de vida são mais precárias, são as que apresentam as maiores taxas de crianças por adulto. Isso expõe um cenário grave.
Significa que nas áreas com piores condições de vida, as crianças estão expostas, por exemplo, a piores condições de saneamento básico, o que pode aumentar sua contaminação por doenças diversas, e pode ser agravado por piores condições nutricionais, consequência da baixa renda familiar. Por isso, é crucial pensar nos efeitos do bairro sobre o desenvolvimento infantil integral e implementar políticas que considerem essa questão.
Alguns potenciais danos associados a condições adversas do bairro podem não ser compensados integralmente pelas famílias, e alguns fatores socioeconômicos não podem ser modificados por intervenções urbanísticas. Mas as redes de apoio sociais numa cidade são de grande importância, e isso pode ser incentivado por alterações no espaço dirigidas a promover o maior convívio entre as famílias de um bairro.
Um aspecto que deve ser trabalhado, e que inclusive consta no Plano Nacional da Primeira Infância é o direito à beleza, que refere-se à importância de proporcionar às crianças experiências estéticas e sensoriais que estimulem sua percepção e apreciação do belo, contribuindo para seu desenvolvimento integral.
Isso inclui o acesso a ambientes e atividades que promovam a beleza em diversas formas, como a natureza, a arte, a música e o contato com experiências culturais. O direito à beleza impacta em aspectos como o desenvolvimento emocional e cognitivo, pois pode despertar emoções positivas, estimular a curiosidade, a imaginação e a criatividade. Também afeta a formação da identidade e autoestima, o desenvolvimento social e a criação de memórias e afetividade.
O ambiente
As políticas públicas podem contribuir para o desenvolvimento infantil, a partir da transformação do espaço urbano. Nos municípios, é preciso lembrar que há espaços muito ou pouco dedicados à primeira infância, e que são complementares.
Há aqueles em que as crianças são a prioridade, e as figuras-chave; há as zonas de integração, onde as atividades para adultos e para crianças são compartilhadas; e as zonas de cuidado, onde as atividades são voltadas para os adultos, mas as necessidades básicas de crianças são consideradas com atenção.
Nas creches, ambientes onde as crianças são as figuras-chave, adequações importantes podem ser feitas. A recente lei da Parentalidade Positiva, sancionada em 2024, prevê, inclusive, que crianças e adolescentes têm direito ao brincar livre, a se relacionar com a natureza, a viver em seus territórios originários e a receber estímulos parentais lúdicos que proporcionem seu desenvolvimento.
Para a coordenadora do Núcleo de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas Sociais Ampliadas do TCE-ES, Simone Velten, isso representa um avanço trazido pela lei.
“O acesso, vínculo, conexão e intimidade com a natureza contribuem para uma infância saudável e para o desenvolvimento integral das crianças. Ter liberdade para experimentar e descobrir o mundo é condição essencial para que possam existir com seus modos próprios de pensar, sentir, agir, criar e apreciar o entorno”.
Simone explica que cada elemento utilizado nos projetos de arquitetura contribui para reações químicas no cérebro das crianças: cores modulam cortisol e serotonina, texturas ativam neurotransmissores, luzes regulam melatonina. Por isso, investimentos em grama sintética ou em playgrounds de plástico padronizados podem parecer mais adequados para as crianças, mas na verdade não são.
“A grama sintética, apesar de prática, apresenta algumas desvantagens como o maior aquecimento em dias quentes, o possível aumento de lesões devido à superfície mais dura e a necessidade de manutenção para evitar o acúmulo de sujeira e proliferação de bactérias. Nos parquinhos, em vez de utilizar somente plástico, é interessante avaliar madeira certificada, que ativa centros neurais de calma e permanência, e tem impactos neurológicos. Em vez de pisos emborrachados, materiais que possam estimular o equilíbrio, e que eles desenvolvam habilidades físicas e compreendam seus limites”, pontua.
Iniciativas
O estudo da Rede Urban95 traz algumas orientações para o desenho urbano, que envolvem:
– Convivência comunitária e territórios protetivos: oferecer espaços públicos diversificados, lúdicos e acessíveis.
Como?
Proporcionar o acesso a espaços abertos variados (ruas, praças, parques, quintais, portas de entrada), com segurança;
Criar espaços de uso comunitário e para famílias;
Integrar os espaços públicos e privados, criando relações amigáveis com a cidade;
Inovar nos espaços de brincar (Garantir espaços de brincar com e na natureza ̆e evitar brinquedos de plástico e de ferro).
– Caminhos e proximidade: Garantir rotas seguras, lúdicas e acessíveis.
Como?
Implementar zonas calmas (velocidade a até 30km/h);
Priorizar a mobilidade ativa e promover segurança viária;
Promover o acesso ao transporte público e a conexão urbana;
Pontos de ônibus amigáveis às crianças;
– Criança e Natureza: Integrar elementos naturais nos cenários urbanos.
Como?
Promover o acesso das crianças e cuidadores à natureza: gramados livres, pequenos bosques, canteiros floridos, beira de lago, dentre outros.
Qualificar as áreas verdes, para torná-las mais atrativas;
Implementar Soluções Baseadas na Natureza, para ventilação natural e o conforto térmico, criar zonas de vegetação plantando barreiras verdes, entre outros.
– Identidade e cultura popular: Engajar as comunidades, valorizar a cultura local e comunicar à população.
Como?
Promover o envolvimento da comunidade nos processos de desenvolvimento do empreendimento;
Dar identidade aos espaços públicos, através da arte e da comunicação.
– Vínculo e cuidado: brincar para aprender a se relacionar com o outro e com o mundo.
Como?
Criar espaços de brincar em áreas livres e abertas para a primeiríssima infância;
Utilizar elementos sensoriais, que despertem a curiosidade do bebê e da criança, como cores, espelhos, efeitos sonoros, plantas com cheiro, árvores frutíferas;
Fornecer espaços de convívio coletivo, que promovam ações de cuidado, como para amamentação, banheiros e trocadores, pontos de água potável. Espaços que permitam a participação ativa dos homens nas atividade de cuidado, como trocadores em banheiros masculinos.
Primeiros passos para aplicação
O território tem um papel-chave no desenvolvimento integral infantil e, portanto, o desenho das intervenções urbanísticas precisa levar as crianças em conta. É importante frisar que avaliações de impacto e avaliações de implementação são essenciais para entender a efetividade de uma política pública.
Por isso, a orientação do TCE-ES aos gestores que o ponto de partida pode ser incorporar o olhar da primeira infância em qualquer intervenção urbanística, sem que isso acarrete necessariamente adicionar recursos financeiros ao projeto.
Assim, pode surgir e uma nova leva de políticas públicas sobre a área urbana, que levem em conta também as necessidades e desejos da primeira infância.
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